15.5.19

Escapadinha à neve

Há famílias que passam férias a vida inteira no mesmo sítio, tal como há outras que repetem os lugares onde vão. Ninguém está certo, ninguém está errado. Cada um deve fazer aquilo que aprecia. Nós temos um ritual do qual gostamos e que procuramos cumprir anualmente: ir à neve à Serra da Estrela.


Com as oscilações das condições meteorológicas, já nos estávamos a mentalizar que este ano não iríamos conseguir ir até à Serra da Estrela, mas o anúncio de neve no segundo fim-de-semana de Abril fez-nos meter o trenó na mala do carro e partir para uma escapadinha de um dia e meio.

Saímos sexta-feira (12 de Abril) a meio da tarde de Lisboa em direcção à Covilhã, com a ideia de aproveitarmos o fim do dia para descansarmos. Só que pelo caminho, na autoestrada, vimos a placa a indicar Vila Velha de Ródão (distrito de Castelo Branco) e surgiu a pergunta “e se déssemos lá um saltinho?”, que como toda a gente sabe é sinónimo de “já estamos a caminho!”...


Passámos por baixo de uma “ponte” metálica onde passa o comboio, avistámos as fábricas que fazem desta localidade uma referência naprodução de papel e seguimos em direcção ao cais fluvial.


Este é um lugar onde se pode apreciar a beleza do Rio Tejo (é possível fazer passeios fluviais a partir daqui), ver uma ponte a alguma distância e as Portas de Ródão ao fundo.


Classificadas como Monumento Natural a 20 de Maio de 2009, as Portas de Ródão são «uma garganta escavada na rocha quartzítica com 260 metros de profundidade», sendo que esta rocha «foi originada há cerca de 480 milhões de anos sob a forma de areias ricas em quartzo no fundo de um oceano primitivo, que aqui existiu. Esta passagem aberta ao Tejo faz parte de uma gigantesca dobra em forma de U, o Sinclinal de Ródão, e constitui as serras de Talhadas e Perdigão», refere a documentação do Geopark Naturtejo.

Continuámos o passeio, ladeados pelo rio, de um lado, e por papoilas agitadas pelo vento, do outro, atravessámos uma ponte pedonal e eis-nos no Sítio Arqueológico da Foz do Enxarrique. Para além de informação sobre a fauna e a flora das Portas de Ródão, aqui existem painéis interpretativos de 30 mil anos de história.




Como se pode ler numa destas placas, «há cerca de 30 mil anos, na confluência do Rio Tejo com a Ribeira do Enxarrique, um grupo de Néandertais estabeleceu um acampamento de base onde reuniu alguns dos animais caçados e fabricou instrumentos de pedra lascada e osso». O local foi descoberto «casualmente», em 1982, tendo desde aí sido «objecto de escavações regulares até ter sido posta à vista uma superfície de 150 m2».


Seguimos, depois, em direcção ao castelo, localizado na parte superior das Portas de Ródão. No percurso serpenteante monte acima vê-se a natureza a tentar curar as feridas do fogo, que vestiu de negro a vegetação. 


Chegados ao cimo, antes de explorarmos a capela branca mesmo ali ao lado ou o castelo mais ao fundo, os olhos arregalam-se de prazer ao ver o Tejo a correr entre montanhas. Mas mais tarde percebemos que esta imagem é apenas um pequeno aperitivo do que está para vir...

Como refere o painel informativo, a Capela da Senhora doCastelo terá sido «construída ou reestruturada no século XVI/XVII». Segundo a lenda, esta construção será fruto da promessa de um barqueiro que se viu aflito numa travessia do Tejo.


Com a capela fechada, apressámos o passo em direcção ao Castelo do Rei Vamba, Castelo de Ródão, Castelo das Portas ou Castelo de Vilas Ruivas. Segundo a informação colocada no local, diz a lenda que a rainha cristã, casada com Vamba, a viver no Castelo de Ródão, e um rei mouro, que morava do outro lado do rio, se enamoraram. O rei mouro escavou um túnel sob o rio para ir buscar a rainha, mas enganou-se no local de saída. O monarca mouro conseguiu fugir com a amada, que atravessou o rio sobre uma teia de linho, mas Vamba trouxe-a de volta e um tribunal familiar condenou-a à morte por despenhamento, agarrada a uma mó. Ao ser lançada, a rainha lançou uma maldição sobre Ródão, daí que esta lenda também seja conhecida como a “Maldição de Ródão”.


Mais interessante do que a torre, à qual se pode subir por escadas interiores, é sem dúvida a paisagem deslumbrante. As Portas de Ródão vistas de cima, o Tejo, a Ilha da Fonte das Virtudes, o comboio a passar junto ao rio e os grifos a voar num imenso céu azul, num local onde só os sons da natureza quebram o silêncio, constituem um conjunto cuja beleza estonteante é difícil de descrever.


Depois de termos conquistado o castelo com uma “Nerf”, o que não foi difícil porque éramos dois adultos e uma criança contra ninguém, já com o sol a dizer-nos adeus, fomos ver os troncos fósseis junto à Casa das Artes e Cultura do Tejo.


A documentação do Geopark Naturtejo explica os troncos de Vila Velha de Ródão são «fósseis raros» que «correspondem a troncos de árvores do grupo das Anoneiras, que viveram na região há mais de 15 milhões de anos, quando o clima de floresta tropical assim o permitia. Após a morte destas árvores, os troncos foram enterrados, tendo as suas fibras vegetais sido substituídas por sílica (o principal componente mineral do substrato arenoso de então)».


Com pena por não termos tempo para continuar a explorar esta zona, seguimos viagem. Chegámos à Covilhã à hora de jantar. Sem grandes referências sobre locais onde comer, fomos à “Taberna A Laranjinha”, onde valeu a pena esperar por mesa. Embora não seja barata, apreciámos a experiência gastronómica, com destaque para os bombons de fumeiro da Beira com molho de maçã e caril (morcela, farinheira e alheira), os cogumelos silvestre salteados com barriga fumada e ervas frescas e o bife à pastor, com molho à cervejeiro, presunto e queijo da serra.


No dia seguinte (13 de Abril), logo pela manhã, a prioridade foi chegar à Torre, que nos recebeu coberta de neve e com um sol esplêndido (quando forem para a neve, não se esqueçam de levar protector solar!).


Depois de uma manhã de brincadeiras, que incluiu o tradicional boneco de neve, veio o momento épico, em que dois criativos reinventaram o conceito de trenó, ao descerem a encosta num painel publicitário que se tinha desprendido, mas que no final da aventura foi reposto no lugar onde deveria estar. Se precisarem de comprar trenó, verifiquem os preços, pois quando lá estivemos estavam mais baratos no shopping que na neve.

Já com uns pingos de chuva, virámo-nos para a parte mais turística da viagem, sendo a primeira paragem no Covão do Boi para ver a Nossa Senhora da Boa Estrela ou dos Pastores esculpida na rocha granítica, da autoria de António Duarte, inaugurada em 1946.


Nova paragem no miradouro dos Covões do Alto Zêzere e, a seguir, pudemos apreciar o Vale Glaciar do Zêzere, considerado «um dos vales em U mais longos da Europa» (cerca de 13 quilómetros), sendo «as evidências glaciares mais a sul em todo o continente Europeu», como refere o Museu Virtual de Manteigas. De acordo com a mesma fonte, «o vale em si deve a sua existência à falha da Vilariça, mas foi moldado pela erosão glaciar durante a última grande glaciação».


A próxima paragem foi num dos locais mais bonitos da Serra da Estrela, que é digno de figurar nos postais turísticos quer esteja coberto de neve ou não: o Covão d’Ametade, onde o Zêzere ganha corpo. «Antiga lagoa de origem glaciar, o Covão d’Ametade, a 1.420 metros de altitude, situa-se no sopé do maciço do Cântaro Magro, onde nasce o Rio Zêzere», pode ler-se na página da Câmara Municipal de Manteigas. Esta é uma zona de lazer, onde é possível fazer piqueniques, acampar ou simplesmente apreciar as árvores das duas margens quem unem os seus ramos em cima do curso de água e nele se espelham.


A última etapa antes de nos despedirmos da Serra da Estrela foi junto à Nave de Santo António, uma «planície arenosa de aluvião, que noutros tempos teria sido uma lagoa glaciária», segundo o site da CâmaraMunicipal de Manteigas. Estávamos prestes a deixar a Idade do Gelo para irmos até à Idade Média. Só faltavam cerca de 200 km para chegar a... Torres Novas (distrito de Santarém).


O grande objetivo era matar saudades da família, mas aproveitámos a ocasião para uma visita rápida a Torres Novas, que começou junto ao Rio Almonda e que nos levou até ao castelo.

Ao chegarmos junto ao castelo, a primeira coisa que nos chamou a atenção foi a estátua de D. Sancho I, da autoria de João Cutileiro, inaugurada a 1 de Outubro de 1990, no início das comemorações dos 800 anos da atribuição do foral àquela localidade.


Entrámos, então, na «fortaleza de arquitetura militar medieval, mandada reconstruir por D. Sancho I com as 11 torres que hoje exibe, depois da conquista definitiva do território concelhio aos mouros, em 1190», pode ler-se na placa informativa.


Percorremos a muralha, de onde se tem uma vista panorâmica da cidade e da região, sendo que existem placas que ajudam a perceber o que se está a ver, apreciámos a alcaidaria (residência do alcaide-mor) e, na falta de armas mais adequadas ao espaço, aproveitámos o amplo jardim para uma luta de Nerfs, que terminou com uma munição perdida nas muralhas.


Não esquecer que Torres Novas realiza, entre 29 de Maio e 2 de Junho, a iniciativa “Memórias da História”, uma «feira de época que recria os momentos mais importantes do passado do concelho», desta feita subordinada ao tema “Tempos Sombrios - D. Pedro de Lencastre, inquisidor-geral do reino”.


Depois de um jantar reconfortante com a família, estava na hora de voltar para casa com uma meta traçada: passar o dia seguinte a descansar!

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